sábado, 21 de abril de 2012

"Lu-gar... de... guar-dar... car-ro"

Naquela época morávamos em um apartamento com localização privilegiada em termos de serviços. Ali pertinho tínhamos supermercado, farmácia, locadora, posto de combustível, hospital, shopping, cinema, livraria, restaurante... Podíamos ir caminhando a qualquer um desses lugares!
Cada caminhada era uma aventura para a Lara e para o João.
Ela estava no esforço de aprender a ler e curtíamos a fase de tentar ler tudo o que aparecesse no caminho. Por isso mesmo, ir para a rua era um divertimento - e um desafio! Cada placa, cada cartaz, cada outdoor, cada letreiro na fachada de um comércio, constituía uma criptografia a ser decifrada! "Fran-go na bra-sa... FRANGO NA BRASA!" (...) "Ga-so-li-na co-mum... GASOLINA COMUM!" (...) "En-tre-ga-mos em do-mi-cí-li-o... ENTREGAMOS EM DOMICÍLIO!"
A respiração ficava afobada na confirmação de cada leitura feita elevando o tom e o 'volume' da voz daquela linda menininha. Quem ficava mais maravilhado? Se era ela ou se era eu? Impossível dizer. 

Numa dessas costumeiras caminhadas, mais uma parada para leitura. Na calçada, em frente a um imenso portão, aberto. Lá dentro do grande espaço, muitos carros guardados. Na fachada lá no alto do portão uma palavra. E a Lara: "Es-ta-ci-o-na-men-to... ESTACIONAMENTO!"
E quando já puxava minha mão para seguirmos caminho - porque as crianças fazem assim, como que para menosprezar o feito; como que para mostrar que foi 'fácil demais' -, o João (três anos mais novo e muitos centímetros menor que ela) resistiu no lugar. Com a mãozinha apontando pra cima, lá pra fachada. Imitando a postura da irmã, com ar compenetrado e as sobrancelhas franzidas como se tivesse no maior estado de concentração e de esforço intelectual. E solta essa: "Lu-gar... de... guar-dar... car-ro... LUGAR DE GUARDAR CARRO! Né, Pai?!"
E agora era ele quem puxava minha outra mão, impaciente para seguir caminho. A Lara com uma cara de 'indignação'. Como fazem todas as irmãs mais velhas querendo encontrar algo 'errado' no que o irmão mais novo ("aquele pirralho!") fez só pra que a conquista dela não deixe de parecer espetacular. 
Ele nem aí! E eu, caí na gargalhada!

Naquele episódio me diverti muitíssimo. E fui muito feliz. E "descobri" que há muitas "formas de uma criança ler".
A partir dali imaginei que, sendo assim, conseguiria, um dia, contar historinhas para criancinhas. Visto que elas "conseguem saber" mesmo quando não conseguem ler! Desde que vejam. Desde que haja um contexto perceptível.
É isso que os livros ilustrados permitem!
=)
-*-*-*-
Quem sabe, então, algum(uns) pequenino(s) 'leitor'(es) consiga(m) "cri-an-ça pre-ci-sa u-sar cin-to pra não se ma-chu-car... CRIANÇA PRECISA USAR CINTO PRA NÃO SE MACHUCAR!" quando ler nosso "O lobo mal-acostumado e os três cofrinhos"!
-*-*-*-
P.S.: Todos os fatos aqui são reais. O episódio relatado é verídico. Eu estava mesmo lá e as crianças citadas são, de fato, meus filhos. Isso já faz algum tempo, claro. Tempo suficiente para que ela agora já seja, autora de poesias e ele - apesar de ainda gaiato, como sempre - já seja quase um leitor crítico! (Mas como ele não deixou de ser o mais novo, as contendas sempre vão existir: "Ah, Lara, tu não sabe isso, pois eu sei!" "Deixa de ser bobo, João, claro que eu sei muito mais que você, só não quero falar agora!" Rsrs! Eles nunca deixam de me maravilhar!)

Nenhum comentário:

Postar um comentário